segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Por Maio dentro


Da mesma maneira

que em Março

os ribeiros sulcam

a terra com gestos

límpidos e frescos,

assim eu desenhei

com os meus dedos

a traços de ternura

o teu rosto,

os teus olhos fundos

de noite,

antes de,

pela primeira vez,

te beijar.

Em paga deste-me

as tuas horas de alecrim,

essas que tinhas guardadas

e desde sempre prometidas,

a um poeta que te encantasse.

Noites houve depois

(ouviam-se já

nas giestas

os passos

do mês de Abril)

em que, com

um carinho lento

e premeditado

te tirei o vestido

e tu me prendaste

com o teu corpo de mulher

que me lavou a sede

no sabor

húmido

quente

que tem.

Corpo que eu bebi

como bebo o vinho

que é sagrado.

Aceitaste

a minha ânsia

da tua carne

até ficaram indistintos

os nossos nervos,

o nosso sangue,

a nossa pele,

no abraço meigo

em que todas as manhãs,

por Maio dentro,

adormecemos.

Impressão


É azul a saudade

que me corre

como um rio

Uma neblina de ouro e âmbar

marca a distância poente

a que ficas

num fim de tarde

vermelho

de estio

E de repente uma asa,

um traço branco

risca o céu

Voa uma gaivota

a procurar-te

...como eu.

Abandono


Também os dias se cansam e adormecem.

Desistem fartos da espera.

Desistem fartos da longínqua deriva

da luz e das palavras

que o coração tanto lhes pediu

Van Gogh


Quem afinal tirou à vida o azul e o lilás ?

Quem pôs na alma e no coração o amarelo

Quem juntou o mar o céu e a terra?

E de tal foi capaz sem ser Deus,

apenas gente ?

Olhe, quem quiser saber do Belo,

veja, é um quadro de Vincent.

Jangada


Já nasci náufrago.

Nunca houve

canto de sereia,

ou rumor de búzio,

que me fizesse

desejar

a interrupta surpresa da espuma,

o infinito abismo de sal,

a vocação

que os marinheiros

dizem haver

no azul .

É por isso que vivo,

os meus receosos dias,

como quem viaja

entre ilhas previsíveis.

É por isso também,

que só demando pelos portos

que têm o sossego

dos lugares reconhecidos.

É muito frágil e iminente a jangada

em que navego a minha vida.

As cordas têm os nós da memória já lassos

e apodrecido o chão, madeira de sonhos,

há muito que, enleada,

a vela da vontade se rasgou.

No horizonte

(em que ao nascer naufraguei )

já nem reparo

Madrugada




Procuro o céu dos teus olhos

para além da transparência da janela.

Pressinto a tua respiração lá fora

enquanto regresso ao linho

da tua pele

onde ontem me deitei.

Assim sou eu a madrugada .

Vejo-te chegar

na luz intensa da manhã

Lembro o teu corpo de deusa

envolto no abraço

do meu carinho nocturno

JOAQUIM MARQUES



ANUNCIAÇÃO DO AMOR


Sem uma palavra

caminhando em passos de

silêncio e luz

(decerto descendo do céu)

assim me chegaste hoje meu anjo

para anunciar o amor.

JOAQUIM MARQUES